A responsabilização do patrimônio da empresa pelas obrigações do sócio
É possível responsabilizar o patrimônio da empresa pelas obrigações de seus sócios? No Brasil, a lei estabelece que os bens da sociedade e os bens de seus sócios devem permanecer separados. Essa regra, prevista no Código Civil, é chamada de autonomia patrimonial e garante que, em regra, os sócios não sejam responsabilizados com seu patrimônio pessoal por dívidas assumidas pela empresa. Essa distinção é um dos fundamentos que sustentam a atividade empresarial, pois permite que investidores e empreendedores assumam riscos sem comprometer seus bens pessoais.
No entanto, essa proteção não é absoluta. Quando a sociedade é usada de forma indevida, como em casos de fraude, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, o Poder Judiciário pode afastar temporariamente essa separação para responsabilizar quem realmente se beneficiou da irregularidade.
Esse mecanismo jurídico é conhecido como desconsideração da personalidade jurídica e surgiu no direito anglo-americano com o nome de “piercing the corporate veil”[1]. Ou seja, levantar o véu que separa a empresa de seus sócios, permitindo que, em casos específicos, o patrimônio pessoal responda por obrigações da sociedade. No Brasil, esse conceito foi incorporado à legislação no Código Civil (art. 50) e no Código de Processo Civil (art. 133 e seguintes), que preveem os requisitos e o procedimento para sua aplicação.
Além da forma tradicional, em que se busca atingir os bens pessoais dos sócios para satisfazer dívidas da empresa, existe também a chamada desconsideração inversa da personalidade jurídica. Essa modalidade passou a ter previsão expressa na lei em 2019, com a promulgação da Lei da Liberdade Econômica, embora já prevista no Código de Processo Civil desde 2015. A desconsideração inversa ocorre quando um sócio tenta esconder seus bens pessoais dentro da sociedade que controla, para se proteger de cobranças. Nesse caso, o objetivo é o oposto: responsabilizar a sociedade pelas dívidas do sócio, quando ele se utiliza da estrutura empresarial para fraudar credores.
Na prática, o que se busca é evitar que alguém se aproveite da proteção legal dada às empresas para cometer atos de má-fé. Por exemplo, se um sócio transfere seus bens para a sociedade da qual é sócio com o único propósito de se esquivar de dívidas pessoais, ele está agindo de forma abusiva. Quando isso é constatado, o Judiciário pode permitir que os credores acessem os bens da empresa usados de forma indevida como se fossem extensão do patrimônio pessoal do sócio. Assim, o “véu” da separação patrimonial é levantado, e a proteção da pessoa jurídica é temporariamente suspensa.
A aplicação desse tipo de medida, no entanto, não pode ser banalizada. O número de pedidos de desconsideração da personalidade jurídica tem crescido, mas o entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é claro: deve haver comprovação de esvaziamento ou ocultação de patrimônio do sócio sob o manto da sociedade empresarial. Não basta que a empresa esteja inativa ou que o sócio não tenha bens em seu nome. Conforme jurisprudência pacífica, é necessário demonstrar que houve desvio de finalidade, confusão patrimonial entre os bens dos sócios e da sociedade, ou, ainda, má-fé e improbidade na atuação empresarial [2].
A desconsideração inversa da personalidade jurídica é, portanto, uma ferramenta essencial para combater fraudes e garantir que os direitos dos credores sejam respeitados. Embora represente uma exceção à regra da separação entre o patrimônio dos sócios e o da empresa, sua aplicação se justifica quando há abuso evidente. Dessa forma, o sistema jurídico busca equilibrar a proteção aos negócios com a responsabilidade dos que agem de má-fé.
É fundamental estar sempre atento às regras que envolvem a estrutura jurídica da empresa para evitar consequências indesejadas e responsabilização indevida do patrimônio dos sócios.
Por Beatriz Tokechi Amaral, advogada de Candido Martins Cukier Advogados.
[1] Tradução literal “perfurar o véu corporativo”.
[2] (STJ; Recurso Especial nº 2150227/SP 2023/0153264-7; Terceira Turma; Relator: Ministro Humberto Martins; Data de Julgamento: 10/12/2024; Data de Publicação: 23/12/2024); (STJ; Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2433789/SP 2023/0258819-2; Quarta Turma; Relator.: Ministro Raul Araújo; Data de Julgamento: 04/03/2024; Data de Publicação: 11/03/2024).